Velas de aniversário




 



    Hoje, dia dois de agosto, deste ano no qual tantas vidas foram decepadas precocemente por uma irresponsabilidade político-administrativa – sim, a ignorância e a incompetência de nossos governantes é que é a real causa de muitas dessas mortes, pois vacina já temos a tempo suficiente para que várias das vidas que o vírus levou fossem poupadas. Quem dera esse vírus pudesse levar pudera também tanta imbecilidade e descaso deliberado! Completando, hoje, trinta e oito anos de vida, parei pra pensar no sentido de uma tradição que faz parte das comemorações de muitos de nós, desde pequenininhos: o apagar das velinhas de aniversário.

Desde que me entendo por gente, eu vejo a presença desse símbolo nas festinhas, das mais ricas, com seus bolos bonitos e decorações, até aquelas mais simples, como as que fazíamos lá em casa, ao sabor de um delicioso bolo de cenoura com calda de chocolate. O bolo deste ano já está ali no forno e fui eu mesmo que fiz, pois não podemos estar juntos fisicamente para comemorar, mas, tradicionalmente, ele é feito pela dona Fátima, minha mãe tão cuidadosa, que nunca deixou de nos ensinar valores tão bonitos, dentre eles o fato de que comemorar a vida é algo importante, que não tem nada a ver com podermos ter um bolo bonito e sim com a essência de sermos família, de podermos dizer uns para os outros o quanto nos amamos, e de cuidarmos uns dos outros. Mas eu nunca havia parado pra pensar no significado daquela vela, e do ato de apagá-la!

Fiz, então, uma rápida reflexão, buscando na memória as possíveis origens de tal tradição e acabei concluindo que, como muitas coisas na cultura ocidental, esta é mais uma das influências do cristianismo, religião para a qual a luz de uma vela é símbolo da vida renascida em Jesus, centro da vida cristã. Acabei formulando a hipótese de que o costume de ter uma vela numa comemoração de aniversário bem poderia vir do fato de que cada criança batizada recebe uma vela, simbolizando a luz de Cristo e a própria vida. Aceitei a hipótese, ela me satisfez a curiosidade, pelo menos a princípio, mas convido a você que me lê, caso tenha algum conhecimento a respeito da origem desta tradição, a compartilhar conosco nos comentários.

O fato é que, mapeada uma possível origem para esse costume, ainda restou a pergunta sobre o ato de apagar a vela! Foi daí que tirei o tema para esta nossa conversa, pois penso que o apagar da vela seja uma lembrança da fragilidade e da efemeridade da própria vida. Quem me conhece, sabe que me despeço das pessoas com uma frase que, dizem, já se tornou um distintivo meu: a frase está no fim deste texto.

Já topei com a morte algumas vezes na minha breve vida. Da primeira vez eu não tenho lembranças minhas, só me apropriei mesmo da narrativa da minha mãe, que me contou certa vez sobre um episódio ocorrido no meu pré-natal: na sala de espera de um hospital, uma pessoa que não estava em pleno gozo de sua sanidade mental a teria perseguido até o banheiro e tentado chutar sua barriga. Mamãe disse que só conseguiu proteger o barrigão ao se trancar no banheiro e fazer pressão de dentro pra fora na porta, enquanto gritava e aguardava por ajuda. Ufa, que sufoco em mãe! Ainda estou aqui pra contar essa história, dona Morte, não foi desta vez...

A segunda vez está gravada na minha cabeça com força maior que a da tijolada que me atingiu, ali, na beira da BR 262, enquanto aguardava para atravessar de volta para o bairro, voltando do salão da igreja, onde buscava o leite de soja que era dado às famílias carentes. Não havia uma passarela para fazer uma travessia segura da rodovia, e algumas pessoas tiveram que perder sua tão preciosa vida ao atravessarem, para que as autoridades enfim fizessem aquilo que era necessário fazer com o dinheiro dos nossos impostos. Eu só me lembro do estrondo impactante que ressoou da batida entre um caminhão de minério de ferro e um de tijolos, bem na minha frente, e de acordar procurando pelo meu amiguinho Marcelo, que estava comigo naquele dia. Estamos bem, não é mesmo, Marcelo? Mas os dois motoristas, infelizmente, não. A morte é uma realidade que não vamos compreender jamais, mas... ainda não foi desta vez, dona Morte!

Muita gente morre de medo de pensar sobre a morte, ainda é um tabu. Aprendi, lá pelos meus quinze ou dezesseis anos, que pensar cada dia sobre essa coisa inevitável que é o apagar da chama da vida, pode torná-la mais urgente, mais preciosa, talvez, pois geralmente valorizamos aquilo que estamos prestes a perder, nos apegamos àquilo, como quem não deseja abrir mão. Pensar sobre o assunto sempre me deu coragem pra priorizar certas coisas, já que, nos dizeres de uma grande mística francesa, a Terezinha, “eu só tenho o hoje”.

A terceira vez foi o câncer. Vencê-lo deu certo trabalho, é verdade, e só foi possível graças a uma série de fatores, que vão desde o prognóstico favorável assegurado pela idade – aos 27 anos – até a companhia e cuidado dos familiares e amigos, a diligência dos médicos e enfermeiros (as), a ciência por trás dos medicamentos e muita, mas muita luta, a cada agulhada, a cada sessão de quimioterapia, a cada fraqueza superada, com a força de vontade que me fazia ir até o fogão e servir outro prato, depois dos desmandes do meu teimoso e frágil estômago que, por efeito das medicações, expulsava tudo pra fora lá no lavabo. Qualquer hora eu conto mais sobre esse tempo; minha gratidão à família e amigos, e a todos que de certa forma fizeram parte daquilo que foi uma verdadeira queda de braço com a dona Morte. Gratidão, porque eu venci!

A quarta vez... desta é difícil falar. Não consigo entender, até hoje, como uma pessoa que passou por tudo o que eu passei, chegou a buscar a morte com as próprias mãos. Eu não via saída para os problemas que estava enfrentando; a vergonha se apoderava de minha pessoa por estar vivenciando um choque entre a moralidade que eu queria seguir e a moralidade que eu precisava seguir para ser coerente com minhas opções refletidas durante o processo de autogenia (escrever a própria história) que se desenrolou com a conclusão do meu mestrado em Filosofia: eu estava preso nas opções ideais de antes, mas já não era o mesmo de antes! Uma lavagem estomacal resolveu o problema, pois dei o alarme de SOS a tempo.

Tem momentos na vida que acontece isso: certo valor que era importante pra gente perde o lugar de destaque que ocupava, ou se choca com outro valor que, agora, é mais importante na nossa estrutura de pensamento. Em Filosofia Clínica a gente chama de choque de tópicos dentro da Estrutura de Pensamento. A boa notícia é que tem jeito, dá pra resolver e a solução já está na gente, na maioria dos casos. Se você quiser saber como, deixe um comentário que eu explico. Costumo dizer pra mim mesmo, às vezes, refletindo sobre aquele dia, que eu não queria abrir mão da vida, não. Só do sofrimento. E havia outras formas para isso, eu só estava tão cego que não enxergava!

É, minha lúgubre amiga, a senhora é bem insistente: ainda houve uma quinta vez, mas esta vai ficar no envelope do silêncio, hoje. Um dia eu conto. Mas quero te agradecer, pois ver a senhora chegando com sua capa preta e sua foice, pra apagar a chama da vida de tantas pessoas, me faz querer viver melhor cada dia, a cada dia. Agora, se me der licença, vou ali cortar o meu bolo e celebrar a vida. Quer um pedaço, dona Morte?

 

Comentários

  1. Faltou você mencionar que já dialogava com a morte também, dizendo que morreria aos 25 anos, lembra disso😅?. Ainda bem que ela não te ouviu.

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    1. Bom, ela ouviu aos 27, né, Cibele! Mas, de fato, que bom que ela não me escutou, porque VIVER VALE A PENA!

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    2. Belo texto Weider!
      Blindar a vida enquanto nos é permitido viver!
      Afinal não sabemos o dia e nem a hora de nos despedir!!
      Feliz vida!!!
      Com tudo de bom que merece!!
      Abraços!
      Precioso és!

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  2. Olá, Weider! Eu também já fui vencedor diante da morte, pelo menos umas quatro vezes. A primeira, foi quando criança comi um fruto verde rajado de uma planta que crescia fácil nos quintais. Resultado: pronto socorro para lavagem estomacal. Conhece esses balanços feitos com tábuas para uma ou mais pessoas em cada lado? Pois é, uma parou a pouquíssimos centímetros da minha testa, uns dois dedos , quando eu cai sentando e retornou. Alguém disse: Você quase morreu. Eu e dois Dobermans num local fechado. Deus me fez sair quase ileso. Fui efetuar um serviço para uma arquiteta e não esperei chegar a escada. Subi numa lata vazia que deslizou e fez-me cair batendo a cabeça na quina do marco da porta . O alisar abriu de ponta a ponta. Achei que ia morrer ali mesmo, devido ao intenso impacto. Pois é amigo, a morte não tem vez com o tempo de Deus. Sobre o bolo e as velinhas: Foi na Grécia antiga, em homenagem a Artêmis, deusa da caça, reverenciada no sexto dia de cada mês. Segundo a mitologia, essa divindade era representada pela Lua, a forma pela qual protegia a Terra.

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    1. Olha aí! Obrigado, Beto, pela contribuição! Sobre seus "acidentes", ainda bem que, agora, esses serviços só podem ser feitos com os EPI's! Viva la vida!

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  3. Viver é muito perigoso mesmo. Se a gente nao se cuida, o mínimo que chega é a morte, e nem sempre ela é física. Que bom que você está vivo e escreve. Pelo visto e de fato, a arte salva. Viva você!!!💐

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  4. E que a vida seja leve como o sopro e intensa como o vento, saborosa como um bolo e que sacie a fome...de vida que temos!

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